segunda-feira, 23 de junho de 2014

O curso de cinema · Meu cinema é marginal

ou “A mulher não tinha ideia nenhuma na cabeça, mas ele tinha uma câmera na mão”


Pierre não tinha esse nome até ir fazer um curso de cinema em Paris. Era Pedro mesmo, mas acreditava que não condizia com sua nova realidade intelectual. Ainda assim, uma parte ínfima de seu coração era piauiense e, por isso, decidiu que seu primeiro trabalho seria em sua terra natal.

Quando Pierre voltou, fingia não reconhecer mais o espaço que viveu por tantos anos, mas o mal da capital (a rotina) estava lá, intrínseco ao seu ser. O jovem saiu, portanto, com seu carro atrás da realidade marginal de seu povo, algo que sua câmera pudesse registrar para a eternidade.

Queria focar nas mazelas da sociedade, nos podres que o governo negligenciava, nas intempéries das vidas dos desfavorecidos. Os focos da sua vida e da sua lente espreitaram, por fim, na beira do Rio Parnaíba. Ali, de cócoras e sozinha, ele a enxergou.

Era uma mulher notadamente sofrida, com um pano surrado na cabeça, um cesto imenso de roupas de nítida imundice e um vestido de chita florido, doado talvez. Ela pegava uma das ceroulas do cesto e batia com raiva em uma pedra, enquanto molhava-a na água do rio, esfregava-a na pedra de sabão verde e voltava a surrar a roupa na pedra.

Pierre não conseguia entender direito o que via. Era tamanha a fúria daquela mulher que projetava na peça sua ira. O que ela pensava? Ele não sabia ao certo, mas tinha certeza de que ela sofrera bastante na vida. Ninguém lava roupa deste jeito tão revoltado. O cineasta enxergava ali um desconto da vida inteira, o momento de extravasar da pobre senhora.

Que grandes sofrimentos ela trazia na memória? Do jeito como praticamente espancava aquelas ceroulas, sem dúvidas que apanhava do dono delas. Retribuía na vestimenta a força que nunca pudera aplicar no homem que a abusava. Todo dia, ele deveria chegar em casa embriagado e com cheiro de bordel e ela tendo que aguentar aquela agressão moral sem poder abrir a boca nem para respirar. E deveria também ter umas quinze crianças, sendo que só sete eram legitimamente suas, para dar um alimento qualquer, arroz e uma carne por semestre.

Ela teria condições de largar essa vida mundana? Nunca. Que oportunidades surgem para alguém como ela, que nem tivera a chance de aprender a ler a placa de que ali não se pode lavar roupa? Ela estava largada no mundo da misericórdia e doações de cestas básicas e teria que ser grata diariamente pelo pouco que lhe restava de felicidade, rezando ainda para que as águas de março não levassem seu pedaço de teto que nem poderia ser chamado de casa. Quanta tristeza, meu Deus! Quanta miséria!

Para Pierre, a mulher não tinha ideia nenhuma na cabeça, mas ele tinha uma câmera na mão e sentia que precisava registrar toda a dor do rosto padecido. Foi ao carro pegar a filmadora, deixando a lavadeira do rio sozinha.



Mas a lavadeira do rio não estava sozinha. Estava ali com seus botões, batendo, espancando, surrando a peça de roupa com raiva na pedra, questionando-se se aquela maldita mancha de terra não sairia por nada neste mundo daquela ceroula, pois já estava há meia hora esfregando a roupa com jeito, olhando sempre de canto de olho para um sujeito muito estranho que lhe olhava. Voltou a se concentrar na peça e pensou “Será que Omo resolve?”.

fonte: http://www.portalodia.com/blogs/andarilhos/meu-cinema-e-marginal-207251.html


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